O ônibus parou e entrei. Bati meu cartão de transporte já agradecendo ao motorista por ter parado. Escolhi sentar na frente, naqueles assentos que ficam virados de lado, próximo ao motorista.
Assim que entrei, vi que haviam outras poucas pessoas no ônibus mas, não prestei atenção, simplesmente sentei, escolhendo a minhas músicas para tocar.
Uma senhora do cabelo curto e grisalho mexe comigo:
⁃ Fala português, né?
Não entendendo o parecer da situação, olhei novamente, meio confusa (viver em cidade grande e multicultural te força a um certo individualismo, qual parece não atingir os mais velhos – eles permanecem prosa, mesmo não estando em seu país).
⁃ Fala português? Repetiu.
⁃ Sim! Respondi.
Me chamou com as mãos. Resisti uns segundos. Me chamou com as mãos novamente abrindo um sorriso sincero.
Levantei e fui. Sentei ao lado dela.
⁃ Você é da onde?
⁃ Brasil.
⁃ Eu também, sou do Guarujá!
⁃ Sou de Porto Feliz!
⁃ Ahh! Porto Feliz! não me parece estranho. Olha! (e mostrou um papelzinho com um endereço escrito à mãos trêmulas)
⁃ A senhora precisa ir nesse endereço?
⁃ Sabe como chegar lá?
⁃ Sim. Mais uns 15/20 minutos nesse ônibus. A senhora desce em frente à estação e caminha duas quadras descendo a rua no sentido contrário ao caminho que o ônibus fez.
⁃ Oh, que maravilha! Obrigada! Sabe o que estou indo fazer lá?
A pergunta foi direcionada aos meus ouvidos com muito ânimo, havia um certo ar de novidade em seus olhos. Me intrigou profundamente.
⁃ Não, o quê?
⁃ Estão recrutando para trabalhar nos jogos de verão, lá no estádio de cricket. Trabalho há anos no estádio do Arsenal. Eles amam o meu trabalho!
⁃ Sério, que bacana! parabéns!
⁃ Sabe quantos anos eu tenho?
Seu olhar novamente me desafiou.
⁃ Poxa, não tenho ideia… mas a senhora é forte, posso ver isso!
⁃ Pois eu tenho 76 anos!
Por um segundo, imaginei tudo o que aqueles olhos presenciaram: eventos históricos, mudanças na política, na sociedade e claro, na mente.
Me veio uma vontade enorme de perguntar tudo o que sempre perguntei à minha avó a respeito desses fatos, simplesmente por perguntar, questão de aproximação. Nem todos os livros não me aproximam da realidade histórica que persiste no olhar dos anciãos. Por isso gosto de ouvir as histórias deles. Elas expõem as coisas não escritas. Achei melhor não perguntar. Comentei:
⁃ Poxa, 76 anos! a minha avó tem mais ou menos a sua idade e, infelizmente, não está tão forte quanto a senhora.
⁃ Pois não consigo ficar parada em casa sem fazer nada!
⁃ Está certíssima. Se tem força e saúde, pra quê ficar parada, né?
⁃ Exatamente. Estou aqui há pouco tempo mas fiquei em outro país europeu por doze anos, trabalhava de segunda a domingo. Sabe o que é isso? É muito puxado mas não conseguia ficar parada.
⁃ Imagino que tenha sido bem duro mesmo.
Notei que estávamos chegando ao lugar que eu precisava descer. Então reafirmei sobre a localização que ela precisava descer e a assegurei que não seria muito longa a viagem. Ela segurou minha mão, sua mãozinha era macia, igual da minha avó. Me agradeceu e deu a sua benção.
Depois de 2 horas, peguei o mesmo ônibus voltando para casa. E surpreendentemente, encontrei com a mesma senhora. Fui direto a direção dela e sentei do seu lado.
⁃ Minha filha, que coincidência, você de novo!
E colocou a mão na testa em surpresa.
⁃ Deu tudo certo por lá? perguntei.
⁃ Graças a Deus, deu tudo certo! Tem muita gente esperando ser recrutada, sabe? Mas a minha vaga foi garantida!
⁃ Ah, que bom! Muito bem!
⁃ É! Menina, estou vendo aqui receita de biscoito de nata com leite ninho. A minha amiga fez e disse que nunca mais fará pois não conseguiu parar de comer, ha ha ha!
⁃ Haha! Nossa, deve ser uma delícia mesmo, hein?!
⁃ Sim, eu vou chegar em casa e fazer!
O meu ponto de descer chegou. Trocamos telefone antes disso. Ela me deu um outro papelzinho, escrito com mãos trêmulas, o seu próprio número de celular. Carregava na bolsa, naqueles bolsinho internos onde também se encontra balinhas e lenço. Por mais que eu havia explicado que poderia ligar do celular dela direto no meu celular e, assim salvaríamos os números, ela insistiu com o método do papelzinho.
Nos abraçamos para despedir e então, desci.
Estou a 5,908.43 milhas da minha Avó.
E o amor de Vó nunca esteve tão perto como ontem.
Ticiele de Camargo ©️ 09/05/2019